Um dia, eu tenho quase certeza,
o valor da poesia, como fonte inesgotável de aprendizagem, fará a humanidade
proferir os grandes poetas, todos os dias e o dia todo. E foi essa valia que
levou Cora Coralina, como poetisa, a afirmar: “Feliz aquele que poetiza o que
sabe e verseja o que ensina.” Não tenho convicção das exatas palavras desta sábia
goiana, mas a intensão foi essa! Cora, como uma mestra doceira, também
saboreava o que ensinava, nas suas doces explanações poéticas.
Sou professor e leciono num
colégio especial, um distinto e imprescindível templo de ensino para jovens,
adultos, idosos e pessoas diferenciadas que não tiveram oportunidade de
concluir os estudos no tempo certo. Peculiar, tanto pela forma de ensinar, como
pela forma de aprender, o Centro de Educação de Jovens e Adultos Professor Luiz
Bezerra é um colégio diversificado, pois exerce poeticamente a educação do
futuro.
O Ceja seduz até os vates com
inesgotável sede de saber. Como o Cimar Melo, um arguto poeta do Distrito de
Assis e um dos cimos das tradições e da cultura do sertão crateuense que resolveu
continuar seus estudos abraçando a oportunidade da EJA. Além dos conceitos pitagóricos
e euclidianos, nos estendemos pelas lembranças históricas do singelo interior
de onde ele nasceu, o Distrito de Assis. Até recitou um dos seus belos versos, onde
canta o encanto do seu torrão: “Neste conto que eu te conto / peço nada
descontar / Pois os contos que eu te conto / eu vou contar bem devagar / São
contos que aconteceram em meu querido lugar....” Além do pasmo na alma, da aliteração
do poema, convida-me para ir ao povoado de Assis, ouvir, in loco, os contos do
povo de lá.
- Vamos, Raimundo. Você vai ouvir
as sapiências do seu Manoel Otaviano que conta história como se fosse o vento
assoviando nos nossos ouvidos. E ainda tem Seu Antônio Rosendo, o Novinho, e desse,
com certeza, você vai gostar!
Concordei e partimos pela
velha Central, agora a bem asfaltada BR 404, rumo ao Curral Velho dos Bonfins e,
antes de chegarmos à ponte do valente Riacho Serrote, dobramos à esquerda,
pegando uma estradinha de terra batida. Em todas as localidades por onde
passamos, Curral Velho, Mudubim, Curral Queimado, Santo Antônio dos Manos,
Mororó e Canudos, vimos os velhos casarões, como que a nos relatar um passado
de árduas lutas e alegres triunfos por terem sucedidos, e de pé, para suas
histórias nos contar. Casarões que muito admiro, mas com uma pena de vê-los,
assim, tão arruinados.
Por fim, chegamos ao lar do
Senhor Manoel Otaviano e, como todo nordestino ativo, me desperta admiração,
pois não sei de que material eles são feitos, é como se fossem só o motor de um
carro a funcionar sem parar. Uma prontidão no olhar, como se vivessem na
iminência de qualquer coisa por acontecer, uma hiperatividade que espanta na alma
sertaneja. Apresenta-nos a esposa e pede
que ela nos prepare um cafezinho. Ele mesmo toma a iniciativa do início da
conversa, corroborando o que eu pensava:
- Seu Raimundo, deixe-lhe
mostrar uma curiosidade que eu tenho guardado aqui em casa. E coloca em minha mão uma pedra branca, polida
como uma machadinha. Diz:
- Isto é um Corisco. É uma
Pedra de Raio que encontrei quando trabalhava construindo os açudes na época
dos bolsões da seca. Somente de sete em sete anos é que essas pedras aparecem,
nos mesmos locais em que raios caíram.
Lembrei-me dos artefatos líticos
confeccionados pelos homens da idade da pedra polida. Mas estava ali para
ouvi-lo e ele continuou a narrar as histórias do Assis.
- Já vi muita coisa feia, nas
chuvas grandes e nos clarões dos raios, Seu Raimundo. Vi um corisco cair num
pau-branco, desta grossura (Seus braços fizeram um grande círculo no ar!) e de
longe a gente só via o facho pegando fogo. Aquela pedra só iria aparecer depois
de sete anos!
Falei dos casarões, e ele me
disse o nome dos primeiros donos de todos eles.
- O da Fazenda Angicos foi do
Cel. Luiz Severino Dias, pai do Seu Raimundo Dias. O casarão mais antigo da
região já foi derrubado, era do Cap. Cesário das Flores, dono de quase toda
região, daqui até a carnaúba de galho era tudo dele, mas era uma pessoa ruim,
de índole perversa, que além de ser paralítico, deixava uma garrucha armada e
um fação amolado, de prontidão, debaixo da rede. Ali, na Barra do Rio, vocês
passaram pelo casarão do Senhor Teteiro, que gostava de corrida de cavalos,
lembram-se dele? E continua a prosa saborosa:
- As grandes terras, hoje, Seu
Raimundo, estão na mão de muita gente e poucos sabem lidar com elas e bem menos
ainda tem coragem de trabalhar. Aqui mesmo, bem perto da gente, tem uma família
com três jovens, fortes e sadios, que vivem da esmola de governo, e não possuem
uma espiga para quebrar. Tenho 78 anos e ainda cuido de duas roças com milho e
feijão branco, o zebu, que vai dar para minha família comer por três anos. Eu
mesmo broco, planto, limpo, colho e todo dia às 4 da manhã já tenho feito o
café e me mando para a roça. Ando 10 km de bicicleta, todo dia e, na caminhada,
poucos jovens me acompanham. Vou lhe ensinar uma coisa importante, seu
Raimundo, nunca diga “Eu queria”, diga sempre “ Eu quero!” Assim Deus ouve.
O cheiro do café torrado
chegou à sala e deu uma pausa na conversa, para melhor saboreá-lo, era um café puro,
forte e quente. Depois o bate-papo continuou.
– Quando eu trabalhei para o Dr. Abdoral
Machado, nas lagoas, tudo era comigo, do comando dos homens até cubar o plantio
das terras. Hoje, aquilo tudo pertence a um assentamento e é uma inutilidade
total.
Seu Manoel me proporcionou uma
belíssima aula de matemática do campo: Uma terça são 10 litros e dá para 50
braças. Uma tarefa são 25 braças por 25 braças e se você vai plantar duas
tarefas jogue 25 por 50 com 5 litros de milho. Aqui no Assis, antes da chegada
do bicudo, a gente colhia 800 arroubas de algodão, era uma roça sem marca de
bonita, Seu Raimundo. Uma arrouba são 15 quilos, você sabe, né?
Agora entendi como ficam os
coitados dos meus alunos quando explico o funcionamento de uma função trigonométrica.
Ali, na casa de Seu Manoel, eu já estava tonto! Alívio foi quando o Cimar pediu
licença para irmos conhecer o tal de Novinho.
Uma das coisas que o Assis não
fica devendo ao Distrito da Ibiapaba são os porcos passeando no meio da rua.
São os donos, fuçam onde acham que tem que meter o focinho e se deitam nas
primeiras sombras que encontram. De longe avistamos seu Novinho sentado numa
cadeira, como os porcos debaixo de um frondoso Benjamim, à calcada. Cimar
apresenta-me:
- Novinho, esse é o Prof.
Raimundo Cândido, que veio da cidade para falar com você.
- Abanquem-se, meus amigos.
É um cidadão gentil, o senhor
Antônio Rosendo, com os olhinhos espremidos nas orbitas e a tez muito branca
para um sertanejo que labutou diariamente de sol a sol pelo ermo do sertão. Soube
que foi o trabalhador mais duro da região do Assis, nunca rejeitara uma faina
por mais dificultosa que fosse. Via-se que não tinha calosidades nas mãos, pois
elas já eram um imenso calo. Os pés eram como patas de touros, acostumados a
puxar cangas de engenhos.
Aconselhou-me: - Seu Raimundo, se você quiser
durar muito, muitos anos mesmo, coma feijão vermelho com toicim, rapadura com
farinha e beba cachaça. De manhã tome uma talagada grande para ir trabalhar, ao
meio-dia outra lapada para almoçar e à noite também beba e pode até se
embriagar, se a sua mulher não brigar.
Novinho já ultrapassou os 80
anos e nunca foi a um médico. Qualquer corte no pé remediava era com uma porção
de terra em cima “É para sarar logo, remédio só faz é apodrecer o pé!” Amansou
muito burro brabo na maneira que ele sempre soube viver, na rijeza e no
trabalho duro que só os Titãs, os semideuses euclidianos conseguiram viver. É
um Hércules no fim da vida e venceu todas as batalhas que enfrentou com os
obstáculos do sertão. Um respeitável herói da Ribeira! Meia dúzia de cambitos,
de uma tropa de jegue, descansando na calçada indica que Novinho só deseja o
merecido descanso dos vitoriosos guerreiros quando se for, desta para melhor.
Despedimo-nos do bucólico povoado
de Assis e desejei voltar para a cidade no saudoso misto do Zé Padre, recitando
os versos do poeta Cimar, que ainda retumbavam na minha mente: “Os contos que
te conto / São contos que presenciei / outros contos que te conto / Quem me
contou, também sei / Algum conto eu ouvi, outros eu presenciei...”
Raimundo Cândido
Nas trilhas de terra batida,
ResponderExcluirvocê vai buscar nas grotas
inspiração para suas estórias,
que revelam a riqueza cultural
da intuição sertaneja.
OLÁ RAIMUNDO
ResponderExcluirENVIEI HJ PARA O ENDEREÇO DA SUA CASA
OS LIVROS A SEREM DOADOS PARA A
BIBLIOTECA DA ACADEMIA.
ENVIEI TAMBÉM PARA A BIBLIOTECA
MUNICIPAL.
EM DUAS SEMANAS DEVE TÁ CHEGANDO.
ABRÇS