Quando escalei os 1500 metros
da Chapada da Diamantina, só para ver um rio despencar lá de cima e formar a
assombrosa Cachoeira da Fumaça, entre Minas e Bahia, ou quando subi os 1154
metros do Pico da Serra Branca para alcançar o ponto mais elevado do Ceará, em
Monsenhor Tabosa, ou mesmo quando galguei os 645 metros da Serra do Picôte, na
Ibiapaba, eu não experimentei o deslumbramento de estar no ponto mais alto do
Morro da Liberalina, no Distrito de Santo Antônio dos Azevedos.
Postado no cimo daquela colina,
não tão elevada como os demais, deslumbrei-me em ver trechos verdes escuros das
matas preservadas entrecortados pelo verde claro dos campos cultivados. Uma
beleza! Ao longe, os cilindros brancos das caixas d’água e as torres das
antenas de telefonia indicavam os povoados espalhados pelo Sertão: Bonito,
Ingá, Lameirão, Santo Antônio... Aqui e acolá um espelho refletia a luz do sol,
anunciando um açude. Ali, fascinado por aquela visão maravilhosa, lembrei-me da
história que o meizinheiro Simplício Barbosa me contara. Tudo aquilo, outrora,
pertencera a uma mulher chamada Liberalina e que cometera um dos mais bárbaros
crimes no sertão. E o êxtase rapidamente se transformou em indignação, ao me
lembrar da perversa viúva Liberalina.
No ano de 1898, segundo consta
no Livro Meus Avós, de Raimundo Raul Correia Lima, Liberalina era uma
riquíssima latifundiária, uma poderosa dona de terras que se estendiam do atual
Açude Carnaubal até o povoado de Santo Antônio: Barrocas, Paraíso, Bonito, Poço
do Boi, Várzea, Tapera, Morro do São Francisco, dos Rodrigues, do Prudêncio, do
Calixto, o Itaim e o Tombador, um mundão de terras na margem direita do Rio
Poti serviam de pastos para os animais. Ouro e prata nem se contam. A
famosa parteira Maria Sena, do Lameirão, falava que o grosso cordão de ouro de
Liberalina tinha um pingente de meio quilo e no formato de coração, que ela
colocava sobre o peito, cruzava os braços e rezava, cantando alto e com muita
devoção.
A viúva tinha um filho único,
que se chamava Luiz, um titã para o trabalho, mas de um acanhamento sem
tamanho. Um dia Luiz arranja uma amizade com a Maria Nepomuceno, uma jovem
pobre e negra, filha de um vaqueiro local. Liberalina, racista e avarenta, logo
proibiu o namoro. A jovem engravidou e Luiz enfincou o pé para trazer Maria
para dentro de casa ou, então, abandonaria a mãe, iria embora com a sua amada.
Liberalina, a contragosto, aceita a situação. Maria ajeita o enxoval do bebê,
engoma os cueiros para a criança que logo vai nascer. O preconceito fervilha na
mente de Liberalina que não suportaria ver aquela criança se agitando por
dentro de casa. Silente, alimentava um plano sombrio e, aos poucos, o mal
dominava a alma de Liberalina. A velha intima a ingênua Maria para um serviço:
- Oh, Maria, vamos pegar uns
paus de lenha, ali na mata!
Saem com as foices e as cordas
na mão. Bem afastado de casa, Liberalina amontoa uns paus e pede que Maria
amarre o feixe. Mesmo com o barrigão imenso, Maria se abaixa e começa a atar o
molho de varas quando, súbito, sente a corda lhe apertando o pescoço.
Liberalina enforca Maria até não sentir mais a respiração e a suspende no galho
de uma catingueira, para simular suicídio por enforcamento.
À tardinha, Luiz chega em casa
e pergunta por Maria. Liberalina não sabia do paradeiro da companheira do filho
e até ajuda a procurar. O desespero do rapaz ecoa pelo sertão: - Oooh, Maria
Nepomuceno!!! Mariiiia!!! Nada. Passa a noite, passa dia e vem mais uma
desesperada noite e nada de Maria. Deve ter se perdido pela mata, alguém dizia.
Foi embora, e você sabe o porquê, outro atiçava o coitado do Luiz. Depois de uns dias viram um cachorro arrastando
uma perna da moça, mais na frente outro com o braço de uma criancinha. E aonde
iam achando um pedaço de Maria e de seu filho enterravam e enfincavam uma cruz.
Então, descobriram que Liberalina enforcara Maria. A notícia do crime hediondo
se espalha pelo sertão e a polícia vem prender Liberalina. Na Cadeia de Pública
de Cratheús, na frente do Mercado Central, a velha rezava sem parar à medida
que cantava bem alto a ponto do delegado não ter mais sossego.
Mesmo cantarolando rezas
estridentes ao cumprir sua longa pena, perde o tino das coisas e enlouque de
vez. Volta para o morro e não mais acha o Luiz, nem seu gado, nem suas terras
que agora têm outros donos. Viver seus últimos dias como mendiga, perambulando
pela mata, não é mais castigo para a velha Liberalina, pois juízo não tem mais.
É provável que tenha sido sepultada ao lado do corpo da nora Maria, ou perto do
ouro e da prata que em potes de barro, por ali, enterrou.
Muitas pessoas ainda vão pagar
promessas na Cruz da Moça, como chamam um dos túmulos de Maria, ao lado de uma
carcomida catingueira, a única testemunha da tragédia do Morro da Liberalina.
A senhora Maria Boa Hora sonhou
com o local da botija da Liberalina, mas contou para outro alguém e o tesouro
se encantou.
No final de certo dia, com o
manto da noite encobrindo a mata do Morro, o corajoso meizinheiro Simplício
Barbosa caminhava pelas terras da Tapera e quando estava debaixo de uma imensa
oiticica, o mundo clareou de cima à baixo que dava para achar uma agulha no
chão. Simplício se assusta e puxa da faca, pois ouvira falar que uns discos
voadores estavam aparecendo com uma luz forte e jogavam uma tarrafa levando o
povo para cima. Então, acalmou-se, pois se lembrou das botijas de Liberalina,
assinalou bem marcado o local e foi embora. Disse-me que nunca arrancou nenhum
tesouro, mas ensina o local para quem quiser ir arrancar.
E ali, postado no alto do morro, apurei bem a audição
e tive a impressão de ouvir os gritos de Luiz, procurando por Maria e seu
filho, perdidos no meio da intricada mata: - Ooooh, Maria Nepomuceno!!! Mariiiia!!!
Mas a resposta que realmente ouvi foi o silêncio das velhas catingueiras que
nunca esqueceram o dia da grande tragédia no Morro da Liberalina.
Raimundo Cândido
Ô Raimundo, que estás a fazer,
ResponderExcluirque estás a nos dever
a escrita do teu promissor romance,
assim tão encantado
que lá não nos deixas conhecer?