quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

A Pedra do Negro




Vi-me, recentemente, cismando com as respostas para uma difícil pergunta: O que é um Milagre? O farfalhar das folhas no afago do vento, o brilho da luz descortinando a escuridão, a Terra girando no vazio do firmamento, uma flor brotando no asfalto, os avanços da ciência em prol da vida, o sorriso gratuito de uma criança...  Iluminei-me, ainda mais, quando me lembrei dos prodígios de Jesus de Nazaré, uma pessoa extraordinária e de pele negra com cabelo crespo, segundo a própria Bíblia e que deu luz aos cegos, voz aos mudos, o caminhar aos aleijados, saúde aos enfermos, vida aos mortos! Negro??? Há de me perguntar. Sim, Negro! Jesus nasceu na África e é descendente da linhagem de Caim, com uma sequência genealógica de pessoas de pele escura, como Tamar, Raabe, Rute, Betsabá e a própria Maria, sua mãe.
Os milagres, que me avivam os neurônios, são as inexplicáveis interferências dos escravos, que falecerem nos sertões de Cratheus e se mostram milagreiros pelo poder da fé do sertanejo, esperançoso nas forças misteriosas dos céus. Será que por serem da cor de Jesus e pelo sofrimento por que passaram, adquiriram esse poder de interceder por aqueles que lhes pedem auxilio? Eu creio que sim!
E foram muitos: Felícia, da localidade de Poti, escrava da perversa senhora Joana Mereré, que a castigava, diariamente, com chicotadas nas costas e com queimaduras que nunca saravam. Felícia morreu no local em que imaginava ser enterrada, transformando-se num santuário de pagamento de promessas. Uma negra santa, na voz do Povo, sim! A Maria dos Milagres é uma escrava milagrosa que intercede pelos devotos de Éden, Valente, Lagoa de Manoel Costa, Grota Verde, Bonito, Arvoredo e Canto dos Pintos. Muitos a veneram na fé, pois são atendidos em suas promessas. Uma negra santa, na voz do Povo, sim! A escrava Bernaldina, que se enforcou no Poço da Confusão em Sto Antonio dos Azevedos, era despertada com um pontiagudo esporão com que lhe cutucavam o fundo da rede para uma eterna luta de sofrimento e dor. Uma negra santa, na voz do Povo, sim! A negra Nazara que, ao fugir de um cativeiro, morreu de fome e sede nos limites de Novo Oriente e Independência. O túmulo de Nazara atende aos romeiros de Porcos, Belém de Campos, Timbaúba, Assentamento Cantinho e Lagoa dos Patos. Também uma negra santa, na voz do povo, sim!
Um mapa estatístico da Província do Piauí (1854) mostra a Vila Príncipe Imperial, Cratheús atual, com 9707 cidadãos livres e 1028 escravos. Mesmo com a “libertadora” Lei Áurea, de 1888, foram poucos os escravos que sobreviveram ao padecimento de um dolorido existir e nunca souberam que estavam libertos. No lombo da Serra da Ibiapaba, no final do século XIX, era uma riqueza só, em Jatobá, Uruçu, Cafundó e Palmeiras se produziam cachaça, rapadura, farinha, manzape e beijú com ajuda destes explorados trabalhadores negros. Tudo, dádiva do Riacho Oitis que corre pelo dorso da Serra Azul, de Palmeiras na Ipaporanga até desaguar no Poço Pesqueiro, do Rio Poti, no Distrito de Ibiapaba.
Na localidade de Palmeiras, bem acima da ladeira do Humaitá e num produtível sitio, a casa de farinha e o engenho funcionavam a todo vapor. Descascar a mandioca, ralar no caititu, levar ao cocho para pubar, depois ao tipiri para a retirada da venenosa manipueira e, por fim, torrar ao forno, era uma grande festa. Mas, o negro mostrava mesmo seu valor, era no engenho, no corte da cana, na moagem, na fervura do caldo nos tachos, na massadeira para bater, dá o ponto e colocar nas formas para fazer as gostosas rapaduras.
 E havia Benedito, entre os “libertos”, um jovem, atlético e simpático negro que crescera unido aos filhos de Sinhozinho.  Desde crianças que brincavam juntos e, entre eles, sinhazinha, a filha única do dono do sítio. Já haviam notado certas intimidades entre o negro e a moça, mas tomavam como mesura de um servo a sua dona.
 Às vezes o amor, perigosamente, se apresenta cego e com asas. Cego para não ver os obstáculos e com asas para transpô-los. E assim se fez. O coração de sinhazinha pulsava ao ritmo do olhar de Benedito que, louco de paixão, se arriscava, mostrava intimidade demais.
Sabiam da impossibilidade daquele amor, tinham consciência do risco da união de um escravo e uma sinhazinha e isso era como pedir uma cruel punição.  O amor total é a sabedoria dos tolos. Benedito e Sinhazinha consumam uma tolice louca, resolvem fugir.
Madrugada sem lua, mal se via a trilha da descida da serra, rumo ao Humaitá, lá embaixo, no sertão.  Benedito já descera muitas vezes os sem fins de ladeira para entregar as cargas de rapadura e os sacos de farinha nos povoado de Assis e Águas Belas. Mas agora, com sinhazinha ao lado, a rampa ficava mais pesada e mais penosa, mesmo tangidos pela pressa e pelo medo. Não demora, em Palmeiras, a notarem a ausência de sinhá e logo descobrem a fuga dos enamorados. O raivoso senhor, cercado de capatazes, se prepara como se fosse a uma guerra, armas brancas e paus de fogo de prontidão, e cavalgam rápido para interceder a fuga.
 O folego de sinhazinha pedia um descanso e, ao se afastarem do sopé da serra, se abrigam debaixo de uma árvore, sobre uma convidativa pedra.  Um bom rastreador usa uma visão apurada, um faro aguçado e o espírito em total alerta para os rastros no ar e no chão. Chegam de surpresa e cercam o local. Sinhazinha dormia com a cabeça pousada no colo de Benedito. Foi quando opai ordenou que a moça voltasse para casa e deixou que seus capangas “tomassem de conta” de Benedito. Depois de muito rogos pelo amado, Sinhá,  sem alternativa, volta para casa na garupa da montaria do pai.
 Os assassinos esperam que se afastem para dar inicio à barbárie. Somente a mata ouviu os gritos do negro, esfaqueado, impiedosamente, até a morte.  E ali, ao lado da pedra, hoje a Lagoa dos Limas, enterraram Benedito.   Alguém, que por ali passava, ouviu a consciência gritar: - Tu que passas, descobre-te! Aqui dorme um forte que morreu! E colocou uma cruz, em honra a um nobre escravo e ao imortal amor! Outro rezou uma oração em louvor. Houve quem fizesse uma promessa por paz e saúde e foi prontamente atendido.  Um dia, o Raimundo Louro, comerciante do Mercado Central, ia para um forró por ali e, ao passar pela Cruz do Negro, um vulto tomou-lhe a frente e ele logo entendeu, voltou para casa. No outro dia soube que ouve uma grande confusão na festa e alguém procurava um Mereré para matar.
Hoje, na lagoa dos Limas, perto da trilha do Humaitá, entre Cratheús e Ipaporanga, há um negro santo atendendo aos rogos do povoado de Assis, Flores, Chora, Coroa, Rosário e Cajá dos Jeorges, pois sabem que na sepultura da Pedra do Negro, como na Cruz de Cristo, o Cristo Negro, um escravo santo sempre atenderá as súplicas de quem o implora! E do meu cismar inicial, chego à conclusão: O fruto da fé é que é o verdadeiro milagre, então!
 P.S. Soube-se que a sinhazinha fora dada em casamento a um rico viúvo, um fazendeiro para o lado de Oeiras, no Piauí, e que nascera um simpático negrinho por lá!
Raimundo Cândido

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

O meu silêncio é grande.





Permita que lhe diga:
As palavras, que havia, calcinaram.
Petrificaram ao fogo das ausências.
E o vazio, do âmago das plenitudes,
gerou um intemporal em mim!

Meu olhar intransparente,
que era azul na amplidão,
que era rubro nas tréguas,
no desbotado das penumbras,
cegou, ao clarão das sombras.

Mas, consinta que lhe diga:
É só a breve alvura cega,
de um náufrago mudo
na superfície profunda
do inevitável e eterno silêncio.
Disse!

Raimundo Cândido

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Rio Poti – O Fluxo



                                                   
O Poti é um rio desaguado, um raquítico rio que pende capenga, desanimado, combalido desde as cabeceiras e que, por vezes, a piedade divina o avigora com providentes águas que despencam dos céus. O Poti é um rio exaurido, sem convicção das fluências que determinam aos rios a correrem para mar. O Poti é de um curso humildemente piegas, de um acanhado e transitório percurso impelido a orações, impulsionado por rezas, empurrado pela força de insistentes rogos, desde a época em que os supersticiosos tapuias Karatis ululavam nas danças de chuvas nas margens ressequidas, implorando a compaixão de tupã, mas temendo aos raios ferozes e tremendo com pavor dos trovões. Porém, o desmilinguido Rio Poti sempre escorreu, afoito e afável, para a foz do meu coração! Sim, eu sou o Poti. O Poti que sofre, o Poti que padece e aflige aos que dele precisam. Mas, antes de ser o Poti, eu sou o rio de Heráclito, o rio que nunca é permanente e que sempre muda, só não muda a esperança!
Nunca desejei que as águas do meu rio fossem súplicas atendidas, ou fossem lágrimas das velas a queimar as mãos dos fiéis, ou ânsias das procissões que se arrastam pelas ruas poeirentas da cidade, porém, como sofrido sertanejo, também orei pelas deferidas bem-aventuranças das torneiras abertas dos céus. E, pelas milenares angústias sofridas, o Poti tornou-se um rio que facilmente se engana com promessas vãs, traduzindo-se num rio irrefletidamente ludibriado pelos políticos desavergonhados que enchem a sua ressequida alma com cegos devaneios. O Poti, um efêmero fluxo pelos Sertões de Cratheús, é um rio de muitas fantasias! Porém, é a intermitência do meu sangue e, por isso mesmo, nunca passou de uma mera fábula infantil, de um engodo aquoso que arrefece o coração!
Mas, engano maior do que a promessa da construção do Lago de Fronteiras, nas proximidades do povoado da Ibiapaba, para transformar o eito do sertão num imenso mar de água doce, foi a insensata jura, ordinariamente vil, em perenizá-lo, e logo na conta do mentiroso, construindo-se sete barragens até o boqueirão da Ibiapaba. E assim, o Poti foi dando ouvido às tapeações dos patifes e às lorotas dos ordinários que só queriam, e continuam querendo, usufruir da inocência dos submissos ribeirinhos.
E na pertinácia de um velho rio iludido, toma aqui acola, atitude de rio prevenido. Pelos 450 km de tortuosa extensão, da nascente à foz, vai deixando centenas de poços que remediam a vida, nas mais variadas formas acostadas às suas margens. Açudes se dispensam por toda imensa bacia, captando pequenas grotas, represando riachos, inclusive na sua calha principal, como o Açude Colinas (3 milhões de m3  de líquida veemência), o Açude Flor do Campo (111 milhões de m3 de vigoroso ânimo), o Açude Carnaubal (86 milhões de m3 de puro deleite no sertão) e a Barragem do Batalhão (1,5 milhões de m3 de esperanças que nutrem a sede de vida crateuense).
Contudo, uma prolongada estiagem é suficiente para mostrar a fragilidade hídrica do debilitado Poti. De 2011 a 2017 as chuvas foram tão escassas que se caracterizou um incrível quadro de perversa seca, completado por um irresponsável desperdício de água pela população. A construção civil e o desleixo do povo contribuíram para um susto sem tamanho na Ribeira do Poti. Afigurava-se, lentamente, uma tragédia anunciada. Em junho de 2013, a cidade de Cratheús entra em crise, não caía uma gotinha de água nas torneiras. Somente o Açude Flor do Campo, na vizinha cidade de Novo Oriente, acumulava, em seu bojo, uns 14 milhões de m3, a única solução, em curto prazo, para o difícil dilema. E a divisão das águas, que seria uma fácil operação matemática, foi uma drástica atitude política e uma estupida estratégia de guerra.
Houve um movimento de resistência contra a transferência das águas para o Açude Carnaubal, correndo a céu aberto, pelo leito do rio, para socorrer a cidade de Cratheús. Procissões, missas na parede do açude celebradas pelo Pe. Alexandre e por Dom Odeli José Magri, Bispo de Sobral, também presentes o representante da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, do Ministério público, na pessoa do Dr. José Arteiro Goiano e quase toda a população de Novo Oriente, que temia ficar sem água. Resolvem falar pessoalmente com o intrépido Governador do Estado. O “Comitê pela Liberação da Água do Açude Flor do Campo Através de Adutora” foi recebido pelo prepotente e arrogante Gestor Estadual com indelicadeza característica e as pobres freiras levaram a primeira chicotada, quando afirmaram na presença do chefão:
- Governador, nós estamos rezando o Cerco de Jericó, pela adutora e contra o desperdício de água!
O Administrador Estadual, Cid Gomes, retruca, com firmeza:
- Porra de reza! Em pleno século 21 e esse povo fica perdendo tempo com resmungos e rezas!!!
O comitê do Açude Flor do Campo ameaçou, em alto e bom tom: “Se o governador mandar abrir as comportas nós a taparemos e é com seres humanos!” Não houve trombetas de Jericó, nem muralha humana que desse jeito, quando na madrugada do dia 29 de Junho de 2013, dezenas de viaturas da polícia ostensiva do Estado, numa operação de guerra, assegurou a liberação das comportas e as águas do rio correram, fluíram como os políticos sempre prometeram. Era a perenizarão do velho e alquebrado Poti, embora só tenham durado 29 dias. Um desperdício de mais da metade dos 7 milhões de m3 de água potável, para a alegria dos socós, das garças, dos jacarés, dos cagados, dos sapos, das gias e dos carões que resplandecem nas margens dos poços, um punhado de Oásis no sertão, entre o Carnaubal e o Flor do Campo. O Pe. Alexandre, indignado, declarou nos microfones das rádios: - Eles foram velhacos! Só esperaram dar a hora de ladrão roubar galinha, quando o povo está no sono pesado, para soltar a nossa preciosa água.
No Distrito de Santo Antônio dos Azevedos há um poço milagroso que nunca secou, chama-se Poço da Confusão, e é belíssimo, com sua mata ciliar ainda preservada. Nas piores secas, mesmo as mais prolongadas, ele forneceu àquele povo santo-antoniense a salvadora água potável das suas cacimbas. O Confusão transbordou e mandou as águas do Flor do Campo para o extenso Poço dos Mocós e este derramou-se noutro poço e deste para outro e outros e foram, assim, tecendo novamente o velho Poti, que há anos não fluía. Até a alma da escrava Bernaldina, que um dia se enforcou nas árvores copadas da Mata Ciliar do Poço Confusão, levantou-se de seu túmulo caiado e ficou a admirar o Poti a correr e a murmurar novamente no leito poeirento, onde só um vento seco por muito tempo cantava.
Quem viu o Açude Carnaubal sangrar, despejando um Poti a todo volume, de uma queda d’água de uns trinta metros, cavada na rocha bruta de seu belíssimo sangradouro, sentiu uma saudade dolorida ao ver, no inicio de 2015, o fosso do Carnaubal todo furado, mais esburacado que tábua de pirulito, pelos técnicos da Cogerh, para encontrar outro Poti subterrâneo, no lençol freático, e poder salvar acidade de Crateús de uma sede eminente.
Receio que, da nascente até os blocos de concreto que delimitam a invisível barreira do Lago de Fronteiras, antes do povoado da Ibiapaba e pelo longo fluxo nos Sertões de Cratheús, o combalido Poti, exaurido, desmilinguido, sonambule sem ter hora de acordar. E até a astuta Mãe D’água hiberna, nas pedras da Goela!
Espero que, quando acordarem, vençam todas as barreiras, triunfem sobre todas as “barragens” e até sobre as imposições perversas do tempo!
Infelizmente, as previsões meteorológicas nem sempre são complacentes com o nosso querido rio e já se falam em mais dias difíceis para os anos vindouros. Mais um ano de seca? Assim não há Poti que aguente! Ah, os tapuias karatis aqui, para novamente ulularem à Tupã!

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Cine Poti


 

Na década de 60, quando o cronista e professor Luiz Bezerra, num de seus passeios vespertinos pelos arredores de Cratheús, deu, ingenuamente, carona ao capeta, o dissimulado satã pediu-lhe para que arranjasse um emprego como fiscal do Mercado Público da cidade, pois estava a fim de mudar de vida e que fizesse o favor de levar um recado para o Dedé do Cinema: - Diga a ele que a sala 195, no inferno, é mais fresca que o cinema dele.  Ele não estranhará muito, quando estiver hospedado no meu hotel!   
O Cine Poti, do Dedé do Cinema na Rua Dom Pedro II, foi um marco e por muito tempo proporcionou lazer na cidade.  Embora as fitas, na sua maioria, fossem recheadas de pólvoras dos violentos faroestes, das estripulias de kung Fu ou do mais (im)puro e picante sexo explicito, aqui e acolá exibia um choroso melodrama como “Dio, come ti amo”, em preto e branco e um sucesso estrondoso de bilheteria. Assisti, logo na estreia, acompanhado da Eva Neide, no final do salão e em pé, pois a fila de entrada dobrava quarteirão e ficamos sem cadeira para sentar. Quando Gigliola Cinquetti cantou: Deus como te amo / Não é possível / Ter entre os braço / Tanta felicidade..”  olhei, de soslaio, para minha querida namorada e  vi lágrimas escorrendo no seu rosto! O calor naquele salão era insuportavelmente agoniante, e acho que o capeta tinha razão em separar uma sala no inferno  só para o Dedé!
Na “Belle Époque” do Cine Poti foi quando assisti aos filmes do Tarzan, com a Jane e a macaca chita sempre ao lado, gritando como se tivesse uma caixa de ressonância no peito: - Oooooooohhh Oooooh Ooh! E há quem diga que foi o único triângulo amoroso do cinema que deu certo!
Quando o cinema era a principal diversão do crateuense, o Cine Poti vivia de casa cheia, todas as noites. Em 1974 o Dedé alugou um Kong Fu de sucesso, Shaolim vence Dragão, em dois rolos de filme de 16 mm. Foi quando o inverno isolou a cidade do resto do mundo, cortou todas as estradas. Depois de uma semana de pancadaria, de socos, de golpes, chutes e rasteiras entre os dois lutadores a bilheteria caiu e sem a possibilidade de pedir um filme novo. Dedé teve, então, uma feliz ideia, inverteu os rolos, colocou o segundo no lugar do primeiro e mudou o título do filme: “Dragão vence Saolim”. Foi outro grande sucesso, mas teve gente que saiu do cinema comentando: - Hai vai, eles fizeram um filme parecido que aquele que nós já assistimos!
Infelizmente o cine Poti fechou. Fatores diversos provocaram o seu fim, bilheterias fracas, exigências descabidas dos empresários que alugavam as fitas. Não havia lucro que suportasse as despesas! Foram mais de dez anos de portas cerradas.  As cadeiras empoeiradas foram as únicas espectadoras de um filme de abandono e solidão!
Mas, em toda cidade há um grande empreendedor com uma visão de oportunidade aguçada e, em Cratheús, esse honrado cidadão chama-se Osvaldo Melo, que além de empreendedor é um cinéfilo apaixonado e resolveu dar vida ao Cine Poti. Adquire o direito de usar o velho prédio com toda “infraestrutura”. 
O projetor de 35 mm com geração de luz a bastão de carvão, grafite coberto com cobre, manipulado pelo carequinha Zé Antônio que aproximava a barra positiva da negativa, gerando um potente arco voltaico, incidindo uma luz fortíssima num espelho côncavo refletida para a película, dando a impressão que uma leve fumacinha levava a imagem para o telão.
Foram diversos títulos de sucesso no novo Cine Poti: Dio, come ti amo, Lua de Cristal com a Xuxa, O Dia Seguinte, mas o povo continuava gostando era de Faroeste, kong Fu e sexo explicito.
Houve espectador que chamou mais atenção que os atores na tela, como o Louro da Ilha, ninguém sentava perto dele com medo de suas reações ao imitar os golpes dos lutadores, grita alto “Uuuuiiaá! Hiiiihá!” em cada acrobacia, pulo ou voo dos lutadores. Num determinado filme um chinês, de um salto só, atingiu o topo da árvore e o Louro se levantou da cadeira e gritau: Huuuura!!! Oh fela da gaita escrrroto!
O Seu Artagnan gostava era dos Faroestes, sentia-se um Bat Marteson com pistola no coldre, carabina winchester pendendo no ombro e, na volta para casa, cantarolava “No velho oeste ele nasceu e entre bravos se criou e uma lenda se tornou: Bat Marteson! Bat Marteson!
Mas, sem dúvida alguma, quem marcou época nas duras cadeiras da sala quente do Cine Poti foi Seu Doura.  Só assistia sexo explicito e do puro.  Era ele quem sugeria os títulos dos filmes que queria assistir: Moças com creme 1, 2 e 3, A mulher e o cavalo e os filmes com as atrizes Vera Fischer e Nicole Puzzi. Quando a fita tinha uma história comprida, uns falatórios sem fim, sem ir logo para os finalmente, Seu Doura ficava impaciente na cadeira e resolvia reclamar do dono do cinema, batia com o cabo do guarda-chuva na escadinha de ferro e gritava alto, chamando Osvaldinho pelo apelido: - Oh, Somalinha!!! Isso é filme para baitola!
Seu Doura gostava de sentar na sétima cadeira da sétima fila e chegava bem cedo para pegá-la desocupada. Algumas vezes encontrava um gaiatinho sentado na sua cadeira e pedia para que saísse, mas se fosse o Lulu Melo a briga estava feita: - Saio daqui não, ora, ora! Tá pensando que aqui é um trem, que tem bilhete marcado? Naquele dia as cenas de pornô não satisfaziam a libido cinematográfica de Seu Doura. Na exibição de Moças com creme 3, Seu Doura se antecipou, foi bater na Loja Só Malha de Osvaldinho e exigiu: - Hoje quem vai abrir o cinema sou eu, quero ver se aquele cachorro se senta na minha cadeira. Lulu fica sabendo e vai antes ocupar a cadeira sete do Cine Poti. Seu Doura entra contente no cinema, pensando nas moças com creme e enxerga um vulto na sua cadeira predileta. O sangue sobe-lhe nas veias e arremessa o guarda-chuva no rumo do elemento que sempre perturbava a libido sexualmente cinematográfica de Seu Doura, que foi embora e nunca mais voltou.
Um dia encontrei um “estranho amigo” no Portão da Feira que me pediu para levar um recado para o Osvaldinho.  Fui logo cumprir a encardida missão.
Encontrei o Somalinha na sala de cinema particular da casa dele, ar condicionado, 52 cadeiras acolchoadas, projetor moderno como um belo título na entrada: Sala Charles Chapim. – Bom dia, mestre Osvaldo, que estás a pensar, tão solitário nesta sala?
- Bom dia, Professor. Estava rebobinando na memória os protestos de Seu Dora: -Somalinha, isso é filme pra baitola!
Depois de muitas gaitadas entreguei o árduo recado que estava incumbido de dar: - Você sabe, né Osvaldinho, quem só leva o recado não merece malho, mas o capeta mandou-lhe um convite  e disse que é sem direito a recusa, você fará companhia ao Dedé do Cinema na Sala 195 do hotel dele.
Tenho a impressão de que os dois empresários crateuense da sétima arte vão ter muito que relembrar, quando estiverem por lá!
Raimundo Cândido

quinta-feira, 20 de julho de 2017

O desencanto das sereias




Um canto encantador ecoa dos paredões
Das entranhas do mar,
Cardumes em volúpia deixam de procriar.
O sussurro das correntezas marinhas
São as trilhas das sereias em volitação.

Elas vêm famintas e sedentas,
A sedução mágica atrai os homens
Para o amor letal. 
Ah! Homens do meu tempo,
Não se apaixonai pelas suas formas encantadoras,
Colhei a lágrima de seus olhos,
E desencantai seus encantos e seus cantos,
Não ficai à sombra dela,
Pois sua sombra é como o raio de sol
Tal como faísca de ouro
Para guarnecer sua cauda
Dos poderes dos homens.

E muitas sereias vieram
E ergueram suas vozes
E dedilhavam as cordas de suas harpas
E cantavam um canto enternecedor,
Mas os homens estavam surdos,
Pois um herói de outrora
Contara-lhe da voz gritante
Daquelas feiticeiras marinhas.
E os homens do mar
Tomados de súbita emoção
Fecharam os ouvidos com algas
Mágicas do fundo do mar de Poseidon.

Então elas cantaram.
E cantaram muito mais alto que o ruído das águas,
Que o som da canção e os suaves acordes das harpas
Reverberavam nas paredes dos penhascos
E multiplicavam-se e propagavam-se
Nas colinas envoltas no manto da noite
Que o mar deserto se encheu de melodia sob as estrelas.

Quando a música morreu
No horizonte das colinhas e do mar,
Em meio às estrelas brilhantes à margem do mundo,
Então se fez silêncio,
E no meio do silêncio,
Um grito desesperado se ouviu.

As lágrimas das sereias
Escorreram pelos seus seios humanos,
E se impregnaram nas escamas de suas caudas
E mulheres humanas se tornaram.
Elas não encantavam mais os homens,
E fizeram reverência ao mundo terreno,
E cada uma desprendeu a última escama molhada de lágrima,
Oferecendo aos homens,
Depois se apaixonaram
E se tornaram mortais.

O sol nascia
E mergulhava em uma grande nuvem branca
Que se erguia na extremidade do mar.
Fazia frio e o mar estava revolto
Uma tempestade se anunciava.

O vento estava pleno de açoites e gritos naquela manhã gelada.


Prof. André – 19/07/2017