terça-feira, 2 de agosto de 2011

JOSÉ PEREIRA DE SOUSA


O que é esse caldeirão permanentemente fervilhante que chamamos mente humana? Como conceituar essa perseguida lâmpada que se convencionou avocar como razão? O que vem a ser esse paradoxal fenômeno que denominamos loucura?

Machado de Assis, no remoto ano de 1882, escreveu um livro - ou conto ou fábula ou novela, porém obra-prima – em que desenha, com o pincel da sua genial ironia, uma caricatura dos valores de sua época.

Subjacente à história de Simão Bacamarte, um médico formado em Portugal que se instala em uma pequena cidade do Rio de Janeiro (Itajaí), ele promove uma viagem fascinante pelos espaços mais íntimos do ser humano. Desliza pelos bueiros mais profundos do raciocínio, senta o cajado da reflexão no terreiro do pensamento e produz um binóculo especial para mirar a nossa argila mental. Discorda da visão majoritária da época, que considera as posturas divergentes da média predominante como desvirtuamento dos sentidos ou descontrole da imaginação.  Conclui que, não raro, rotulamos superficialmente de loucura aquilo que, em verdade, é a mais profunda expressão de lucidez.

Crateús sempre foi uma cidade prodigalizada com a presença, em suas largas e generosas ruas, de pessoas alheias ao figurino convencional de modelo comportamental. José Pereira de Sousa, o Pereirinha, é uma delas. Bonachão, corpulento, solitário e solidário, imune ao ódio, ansioso por um sorriso, avesso a maldades, discípulo da bondade.

Conheci-o, na década de 1970, no comércio do meu pai. Eu era um menino e ele, vendedor da Casa Beija-Flor. Depois nos reencontramos, ao final da década de 1980, quando ele retornou do Rio de Janeiro, onde passou uma temporada trabalhando no famoso hotel Glória. Voltara fascinado com a liderança carismática de Leonel Brizola, cuja mão havia apertado em uma praça carioca.


O final dos anos oitenta e início dos anos noventa sacudiram Crateús. Uma brisa de esperança bafejava a cidade, que exalava um charme mudancista. Um grupo de jovens políticos ascendia ao poder municipal. Pereira estava próximo dessa turma. Logo, abriu-se uma dissidência e, nas eleições de 1990, do grupo emergiram dois candidatos a deputado estadual: Manoel Veras e Sérgio Morais. Amigo dos dois, Pereira vivia a desconfortável situação de ter que se equilibrar entre ambos sem que isso causasse constrangimentos. Idealizou uma solução para o caso: no bolso direito andava com o retrato (“santinho”) de um e no esquerdo o do outro. Quando se aproximava de aliados de um ou do outro, sacava a foto que faria a festa dos militantes. É óbvio que todos sabiam da estratégia... Um belo dia, Pereira adentra na barbearia do senhor João Freire e lá encontra Sérgio Moraes. Este lhe indaga: - Pereirinha, você está comigo mesmo?  Assustado, Pereira responde: - Claro, meu chefe, estou com você. Tanto é que carrego sempre o seu santinho no meu bolso. E, nervoso, erra o bolso e exibe a foto de Manoel Veras...

Tempos depois, selecionado em concurso público, foi efetivado nos quadros da municipalidade. Lotado no Gabinete do Prefeito durante a gestão de Paulo Nazareno, andou o município inteiro e protagonizou vários episódios que enfeitam o folclore político local. Nazareno fez fama como Prefeito de atitudes inesperadas, amigo das minorias discriminadas. Quando da inauguração do CAPS (Centro de Apoio Psicossocial), Paulo fazia um discurso emocionado narrando que aquele espaço seria um lar para pessoas muito inteligentes, dotadas de grande sensibilidade e que, no entanto, a sociedade marginalizava, classificando-as como “loucos”... Pereirinha interrompe: - como eu, doutor Paulo?!!!  A gargalhada foi geral.

Pereirinha é um ser prestativo, com enorme disposição para servir. Mora sozinho em uma casa no bairro São José, o santo do seu nome. Tem uma legião de amigos. Esconde a idade. Parece usar isso como escudo para proteger a tenra infância que vive bailando diariamente em sua alma. É, de fato, um menino. Menino que leciona aos adultos que é possível se viver de bem com os outros, de modo desprendido, aberto às novidades, sem cultivar rancores de qualquer espécie, liberto dos preconceitos tolos da política, expondo na janela da convivência as samambaias da leveza e da alegria. Alguns podem até considerar louco quem assim se comporta. Olvidamos de reconhecer, na masmorra da ganância e na escuridão do nosso egoísmo, que essas pessoas são, como ensinou Machado de Assis, verdadeiros vaga-lumes da lucidez.   


(Por Júnior Bonfim, na Revista GENTE DE AÇÃO)














 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário