Vinténs do Mercado
O tempo, no mesmo instante em que nos subjuga, oculta as nossas fiéis imagens. Este mesmo tempo que transforma o nosso hoje em vulto envelhecido, deforma as distâncias que tínhamos na impressão de uma breve profundidade ou de uma longuidão que não mais vigora, enquanto nos entorpecemos nesta passageira eternidade. Como se uma delgada nuvem ofuscasse tudo aquilo que um dia vivemos. E basta um simples sopro na memória para que as formas, os semblantes e os fatos importantes se conglomerem novamente em frágeis recordações, ressuscitadas de um longínquo passado. No presente imediato, as distâncias são bem mais breves que aquelas da infância, os prédios são bem mais singelos e sem aquela cronológica magnificência que ficou conservada em nossa ingênua impressão.
(Transporto-me. Ouço ainda a dura e doce voz de minha mãe, às 3 da tarde, que me expedia uma firme ordem: — Vá depressa ao mercado compar carne para o almoço de amanhã. Àquela época, matavam-se os bois à tarde. E como bom e obediente pirralho, partia numa pesada bicicleta Gulliver, de meu irmão, que era um pouco alta para minha estatura juvenil e tinha que pedalar pelo aro central, pois não alcançava a cela. Uma lonjura imensurável de alguns quarteirões, que separava o Mercado Central de minha casa, era como se fosse uma longa viagem.)
Hoje, quem passa pela Rua D. Pedro II, na calçada do mercado, ouve logo a voz de Seu Menor, que nos convida a entrar no seu comércio. Seja um freguês ou um velho conhecido, ele simpaticamente ordena: — Botem aqui um tamborete, para nosso amigo se sentar! E uma conversa se inicia, calorosamente: — Como vai sua mãe? Era a mesma pergunta de sempre, demonstrando seu grande respeito e admiração pelas pessoas mais idosas. O trabalho, quando é realizado com prazer, tende a levar o seu autor para uma sábia longevidade, é o que notamos quando se tem uma alegre palestra com Seu Antonio Soares Martins, o Menor. O prédio do mercado ainda conserva um pouco de sua arquitetura gótica nas poucas fachadas comerciais e ainda tem aquela gárgula de queda d’água nas arcadas dos portoes centrais, mas na maioria, já foi tudo mudado. — Meu filho, não temos leis que obrigue o povo a conservar as fachadas dos prédios publicos, diz ele. E continua sua explanação: Considero que mercado é o coração da nossa cidade. E me vem da memória um texto que li em algum canto por aí: “Toda cidade é como um caracol que principia e termina no seu animado mercado, como se fosse o indispensável coração, vibrando, ramificando-se por suas esparsas ruas, num tráfico de riquezas, batendo de porta em porta num desejo de labor e vida.”
´ Neste nosso mercado, que é também centenário, já aconteceu de tudo, gerações inteiras nasceram e morreram trabalhando por aqui. Continua discursando: —Lembro que na época da eleição de Franco Rabelo, havia um velho que bebia muito e era chamado Furtuoso José de Sá, ele dizia: “Esse povo de Crateús é tudo sem vergonha e ladrão. Os homens todos são Franco Rabelo e as mulheres, frangas do rabão.” E tentando desmoralizar o mercado, ele entrou à cavalo no portão de trás, mas quando saiu no da frente, a polícia já esperava por ele. Em 1955 eu botava água para as cafezeiras, trazia em carga de jegue, despejava em seus potes e quase todas elas se chamavam Maria,
Prossegue, uma das secas mais cruéis, ocorridas no Ceará e em Crateús, foi a de 1958, o povão do interior, com sua família inteira, invadiu o mercado. Foi preciso a intervenção do Batalhão, mas todos os comerciantes ajudaram. Uns deram fardos de rapadura, outros de sacos de farinha, o Chico Gomes matou 14 boiotes que foram consumidos na rapidez de quem mata uma fome grande. Uma seca medonha, mas em dois dias o 4º Batalhão tinha acomodado a todos, aquietado tudo, mas não resolveu p problema das estiagens, de quem cultiva a terra e nela morre de fome, esclareceu seu Menor. Ele relembra de alguns comerciantes antigos, Seu João Melo da Casa Beija-Flor, Seu Manoel Ferrim, Seu Eugênio, Seu Chico Leitão, Seu Luiz Hora, Seu Antonio Ricardo, muitos já se foram. Mas fala com especial ênfase é mesmo de Seu Antonio Ricardo por ser o personagem principal das historias pitorescas, ao estilo de seu Lunga de Juazeiro. Ele nos conta: Um cidadão fez uma compra e sobraram umas moedinhas de vinténs no troco. O Freguês perguntou: Seu Antonio, o que vou fazer com essas moedas, não valem mais nada! Ele respondeu rápido: - Jogue no mato! O freguês obedeceu na risca, jogou as moedas na rua e foi embora. Depois Seu Antonio comentou: — Este cabra ai é mais ignorante que eu!
(Volto a sonhar. Estacionei a Gulliver na calçada, escorada pelo pedal no meio fio e fiquei admirando, assim meio espantado, meio maravilhado, com um ceguinho no portão, pedindo esmola, tocando numa viola de poucas notas com uma cantoria que pedia a Deus para pagar as esmolas recebidas e que nos livrasse do inferno e das pragas dos maus vizinhos. A pancadaria do machadinho, cortando os ossos, se misturava com a algazarra de propaganda de boi gordo e de barateza das mercadorias de cada magarefe, como num animado teatro, o que fez me lembrar o que tinha ido fazer. E lá estavam os boxes de Seu Chico Véio, de seu Clementino da carne de porco e de Seu Agileu Nunes donde eramos fregueses.)
Seu Menor continuava contando as histárias que já fazem parte de um folclore crateuense, e minha atenção retorna ao momento atual e volto a me divertir : - Um cidadão chegou para comprar fumo de corda, da marca Arapiraca que tem o cheiro forte. O Cabra cherou um rolo, cherou outro e soltou uma pufa. E lá estava Seu Antonio sentado no balção, pitando um cigarrinho e balançando a perna. O Cabra pergunta: - O Senhor num tem um mais forte não? O que seu Antonio respondeu: - Para cagar, não!
Quando se ultrapassa os limites da simples existência humana, todas as histórias deixam de ser do homem e passam a pertencer ao mito, que leva na sua luz o real e o imaginário de uma existencia, e não se percebe mais se a fábula é uma realidade ou em que momeno o simples homem se tornou a lenda. E Seu Menor prossegue desfiando uma lista interminal de narrativas de Seu Antonio Ricardo: - Um cidadão chegou para comprar corda, daquelas grossas para tirar água de cacimbão, que era vendida no peso. Nosso lunga se levanta de seu tranquilo balcão e coloca a corda num dos braço da balança e o respectivo peso, para equilibrar o pedido do fregues. Mas este logo volta reclamando, que tinha faltado umas poucas gramas de corda. Calmamente Seu Antonio Ricardo corta um pedacinho da corda, coloca na balança e fecha as 50 gramas que o freguês disse que estar faltando. Enrola num papel de embulho e o entrega. Mas novamente a reclamação: - Mas seu Antonio, que vou fazer com esse pedacinho de corda? A resposta você já sabe, né! Foi obvia para quem ganhou a fama folclorica que agora tem! Foi essa mesmo que estais pensando!
Despeço-me do Seu Menor, um dos últimos moicanos do coração da cidade, dignificado pela idade e pelo Trabalho que mantém vivo em seu peito aquela pequena faísca de fogo celestial, chamada consciência.
. ( Regresso novamente ao meu sonho e para aquele dia remoto, que nunca esqueci, de onde estou voltando pra casa semeando minhas futuras saudades e com um quilo de carne dependurado numa tirinha de palha, pedalando uma velha Gulliver.)
Raimundo Candido
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