sexta-feira, 22 de julho de 2011


AS ARMADILHAS DA RUA CEL. LÚCIO
                                       Edilson Macedo


            Trafegar pela Rua Cel. Lúcio, no trecho compreendido entre as Ruas Firmino Rosa e Cazuza Ferreira, é quase caminhar por campo minado. A cada passo o perigo é iminente. Fluxo intenso de veículos, velocidade excessiva, violações de normas básicas de segurança e descaso do poder público são alguns dos motivos que põem em xeque a vida de inocentes que por lá habitam ou se arriscam diariamente.
            A Rua, que liga o centro da cidade ao Bairro da Ilha, um dos bairros de maior densidade populacional de nossa cidade, há muito carece de reformas, ou pelo menos de providências que facilitem e protejam as vidas de habitantes e transeuntes.
            Um pequeno passeio, de preferência à pés¹, pelo referido trecho, basta para que se saiba que o alerta que aqui fazemos é verdadeiro e de boa fé. Pena que nossos políticos e autoridades competentes não tenham tempo para gastar sola de sapato por onde trafega o canelau². Façamos o caminho, então...
            De saída, antes mesmo de engrenarmos uma segunda³, lado direito, sentido centro-ilha, ops!!! Uma parada! Uma Clínica Médica e uma Loja de Grife fizeram desuas calçadas estacionamentos privativos para funcionários e clientes. Resta-nos descer a rampa (é rampa mesmo) e disputar espaço com motos e carros enraivecidos.
            Triste e estarrecedor é saber que as ditas cujas, Clínica e Loja, pertencem a um importante político desta tão maltratada Pólis dos confins do mundo. Mais triste e mais estarrecedor ainda é ouvir o silêncio gritante, a inércia conivente da Prefeitura. Cadê o Código de Postura?!  O bicho comeu?!!!  Andemos...
            Pouquíssimos metros adiante, novo ardil –  seis  Bocas- de- Lobos, literalmente arreganhadas, prontinhas para devorar o mais incauto e desatento filho de Deus. Três de cada lado da Rua, para que a justiça seja igual para todos, indo ou voltando... Quanto ao mal hálito que exalam, aceitemos com resignação, o mais sombrio e trágico da realidade reside um pouco adiante.  Caminhemos...
            Eis que chegamos à ponte que sobrepõe nosso amado e contundido Rio... e interliga a Ilha ao centro da centenária Pólis. Aqui, amigos e amigas, Seres humanos e Ceras humanas, reside o imponderável. A dita, construída há quase cinquenta anos atrás, quando nossa frota de veículos se limitava a meia dúzia de jeeps e quatro lambretas, já não atende às necessidades dos dias atuais. Se o cenário é o mesmo, a novela é outra. Hoje, carros e motos à mil, bicicletas e humanos (de todas as idades e credos) disputam brava e acirradamente o exíguo espaço da velha e inapta pinguela. Sérios são os agravantes. 1) uma das laterais, previamente arquitetada e destinada aos bípedes mortais, foi  inadvertidamente ocupada por um duto da Cagece. Alguém viu?!!!  Outro, mais agravante ainda: Abismos (de verdade mesmo) sem nenhuma parede ou baliza de proteção, antecedem, de ambos os lados, o acesso à ponte. O risco é permanente, a proteção divina, nem sempre.
            Caso tenhamos a sorte de sairmos ilesos desta arriscada empreitada, resta o cruzamento com a Cazuza Ferreira...
            Depois é caminhar até a Imaculada e agradecer a Deus. E não esqueça, afortunado viajante, de deixar uma moedinha para a Madre Santíssima.
            Enxerguemos com os olhos, não com a dor indelével...
  


1.      Ou quem sabe de cadeira de rodas
2.      Com a permissão do Poeta e Sociólogo Airton Monte
3.      Ao Chico Budu, in memoria

terça-feira, 19 de julho de 2011


                                                               As botijas do Zé Dobrão

            Tenho compaixão dos meus verdes amigos vegetais que brotam pelas ruas enfeitadas destas cruéis urbes. Tudo em razão de terem que suportar o efeito de suas podadas arquiteturas paisagísticas. É com tristeza que contemplo estas pobres plantas depenadas pelas ruas, num tronco desornado de seus indispensáveis galhos, como que pedindo clemência aos céus.
            Algumas velhas árvores parecem saber de sua sina ou querem adivinhar logo o destino trágico para seu arcabouço vegetal, que penosamente vai se formando, cascas sobre cascas. Dá-me a impressão que temem o gume de uma foice ou a dilaceração de um machado.
            Há arvores em que até a sombra é carregada deste fatigado peso.            Sentado aqui, embaixo de um desses meus verdes amigos, a quem muito simpatizo, na calçada da casa do Zé Dobrão, lembrei-me de um bordão característico de uma famosa ONG mundial chamada Greenpeace, que me causou uma profunda impressão: “Quando a última árvore tiver caído, quando o último rio tiver secado, quando o último peixe for pescado, vocês vão entender que o dinheiro não vale nada.”
            Sempre que posso venho aqui e fico sentado à sombra, na luz da lua, deste majestoso pé de Sebinho, carregado de verdes vagens, que tem uma pasta branquinha e doce como mel. De dia, os bem-te-vis, os sabiás e as primaveras fazem a festa. Mal a claridade retira-se de seu luzente palco, vem um bando de morcegos frutíferos com seus imperceptíveis ruídos ultrassônicos, localizando com precisão a posição exata das vagens, para saborear o açucarado néctar e passam em revoada por sobre nossas cabeças, na calçada do Zé.
            É o espetáculo que agora assisto e me faz lembrar de um presságio triste que circula nas concepções dramáticas de nossas vidas, que diz: “Um dia iremos necessitar da sombra de uma árvore, vamos vagar livremente a procura de uma e o que encontraremos serão galhos secos, troncos sangrando e raízes exaustas.” Tomara Deus que isso não ocorra, nunca!
            Na frente da casa do Zé Dobrão, começa mais uma sessão noturna de bate-papo, despretensioso, que a modernidade está apagando de nossas deliciosas calçadas.
            E do rio do Tourão, aqui ao lado, que desce majestoso para encontrar o Rio Poti, logo a uns poucos metros abaixo, vem um aroma característico de margens ribeirinhas, como lá nos bíblicos Tigre e Eufrates da antiguidade, com seus currais de gado, como aqui, no final da Agamenon Machado. É o próprio Zé que explica o porquê do nome da rua: — O Dr. Agamenon, antigamente, receitava na casa ao lado. Era um bom médico, e ao meio dia sempre passava com um  litro embrulhado debaixo do braço, enquanto receitava o povo, ia tomando, tranquilamente, sua cachacinha. A conversa vai se soltando pelos mais diversos assuntos. Alguém de repente, sem mais nem menos, indaga:
            — Vocês ouviram a entrevista do João Aguiar, no rádio? Foi sobre uma botija que ele sonhou, mas não teve coragem de arrancar, quem ficou com o tesouro foi outra pessoa. Ele ficou só com um anel de ouro que deixaram por lá. Era um deixa, para que ele entrasse em cena, com suas gostosas histórias sobre nossa origem, sobre nossos antepassados:
            — Na época que meu pai trabalhava no Alegre, na fazenda de seu Jovino Melo, lá pro lado do Parque de Exposição, também se achou umas botijas! Ele deixava a frase solta no ar.
            A curiosidade, que é mãe de toda ciências, de todos os conhecimentos, invadia-nos a alma e, pelo reflexo agudo de nosso olhar, Zé percebia a súplica para que continuasse a narrar sua histórica. E prossegue...
            — Nos terrenos da fazenda Alegre tinha uma imensa lagoa, com muito mato ao redor e um grande pé de Pereiro, onde os caçadores de marrecas armavam suas tocaias. Noite havia em que se assustavam com uma marmota, uma visagem que aparecia por lá. Diziam que um bode com uma grande barbicha e uns longos chifres chagava num alvoroçado barulho e em altos berros. O Zé imita bem com sua voz onomatopéica perfeita: — Beeeeeé beeeeeé beeé eeeé beeeeeeeeeeeeeé beeeeé bé beeeé beeeé eé beé! Os caçadores corriam com medo, passavam sebo nas canelas e esqueciam até dos coitadinhos das chamas de marrecas.  Zé Dobrão vai nos esclarecendo que na época dos revoltosos, as pessoas guardavam seus tesouros em ouro enterrados sob copas de árvores, para protegê-los. Com a morte de seus donos, os potes de barros ficavam lá esquecidos e enterrados, até que um escolhido sonhasse e arranjasse uma titânica coragem para arrancar a botija, munido de pás, picaretas, velas e orações. Tinha que ser numa sexta feira, a meia noite. Não esquecendo de traçar uma estrela de seis pontas no chão, antes de começar a cavar.
            — Eu, meu pai e seu Jovino, íamos com o gado pela trilha do velho Pereiro. Quando chegamos bem embaixo da árvore, vimos os dois buracos já feitos, de lados opostos. Advínhamos logo: Nesta noite alguém arrancou umas botijas por aqui... Meu pai se abaixou e tirou um pedaço de corrente do buraco e foi logo mostrando para seu Jovino, que disse:  — Não compadre, num é ouro não! É só um pedaço veio de bronze e colocou no bolso. Depois daquelas escavações que vimos debaixo do Pereiro, nunca mais apareceu nenhuma marmota por lá. E querendo mudar logo de assunto, dispara a queima-lingua:
            — Vocês viram como o capim amanheceu hoje? Estava coberto de uruvai! Assevera-nos de sua cadeira de balanço.           
            — O que é uruvai, Zé? Você quer dizer orvalho, não é? Alguém retifica, já esperando uma súbita resposta.
            — E orvalho num é aquilo que a mulher tem? Dispara o Zé com mais uma das suas finíssimas afirmativas folclóricas. O bom mesmo é a gente ouvir a gostosa risada de Dona Chica, sua esposa, num riso solto e espontâneo, que contagia e nos dar vontade de voltar no dia seguinte, para mais uma rodada de prosopopéia do Zé.


Raimundo Candido

segunda-feira, 18 de julho de 2011

UM TIPO SUSPEITO

Elias de França

Era um desses que fizera o raro movimento inverso, contrariando a lei da gravidade brasileira: nascido no Sul (Sudeste), veio cair no Norte, ou melhor, nas cearenses terras nordestinas. Órfão de pai e mãe depois dos trinta, tardiamente se dá ao desafio de cavar a sobrevivência, sem os generosos subsídios do pai marinheiro. Tivesse nascido fêmea, faria jus à pensão vitalícia de filha de militar, que, àqueles tempos, ainda consistia em direito adquirido.
Mas vez que macho nascera e estivera até então, homem haveria de ser sempre. Sem ambições e com um coração maior que o juízo, veio a se meter com a penosa construção da arte. E assim embrenha-se sertão-a-dentro, na busca de garimpar a saga mais bela para uma historia de vida.
Foi assim que, numa boca de noite, desembarca em Crateús, depois de umas cinco horas de Fortaleza à Hidrolândia, mais oito de divertidas companhias na oficina de contação de histórias, mais duas de pau-de-arara Hidrolândia-Ipu, umas três horas de espera no Posto Encruzilhada, mais dois tempos de salabancos na topic até Nova Russas, uma tarde de prosas com as moças do Oeste e, enfim, hora e meia de Barrosão.
Como de costume, seu vulto era todo malas (pretas): um violão encapado, uma mala de carretilha, uma grande bolsa, uma mochila de laptop e sua inseparável mochila necessary, cujo conteúdo nem o diabo adivinharia.
Salta na porta do Banco Privado para ali tentar resgatar seu pouco dinheirinho. Já havia pendurado a conta do hotel, no último rancho, porque os caixas lhe sonegaram o saque, nas varias tentativas que fizera em cada um dos vilarejos em que passara. E ali, mais uma vez, a máquina fria lhe avisa estar vazia de numerários. Em fúria, agarra-se a seus três telefones celulares e passa a percorrer o doloroso itinerário de etapas ditadas pela voz eletrônica do outro lado do fone. Seus pés e olhos a acompanhar o contrapasso sem fim daquela maratona de espera da solução que a antipessoa em linha nunca lhe trazia.
A viatura do Ronda do Quarteirão já cumpriria sua quarta averiguação estratégica em frente ao recinto, sem que aquele elemento, em atitude suspeita, se ausentasse do local. E em cada volta, o indivíduo transparecia mais conluio. Ao telefone, andando no interior do banco como que a medir em passos o território e, vez em quando, encostando o rosto nas vidraças para sondar o derredor. O destacamento, então, chama pelo moderno rádio o comando para comunicar a abordagem ao suspeito, ao que obtém pronta autorização.
Os praças saltam da viatura de armas em punho, chutam a porta de vidro com um dos coturnos e cercam o sujeito. Este deixa a voz eletrônica falando sozinha e ergue-se em membros e torax para o alto, para a revista. A moça de farda é designada para vasculhar as tantas malas e mochilas enquanto o sargento conduz o interrogatório:
- Como se chama?
- É Ted!
- Mora aonde?
- Fortaleza.
- Trabalha? Aonde?
- Hidrolândia.
- de onde vem?
Nova Russas...
Atento às respostas e vendo o documento de identidade, o sargento constatava a avalanche de contradições em torno daquele sujeito, de estatura mediana, cabelos avermelhados, olhos claros, com sotaque carioca. Nada batia. Nem o dito com o dito, nem com o não dito. Pois no RG, nada de Ted e sim um nome estranho, de origem saxônica: Flamsteed Flamarion; local de nascimento: Rio de Janeiro, a terra do crime organizado; carteira de trabalho, branquinha, sem um único registro...
As atenções se redobraram a espera de, a qualquer instante, a moça policial desvelar de dentro das malas pretas as armas sofisticadas que o caso transparecia. Mas na muamba, apenas um violão velho sem fundo falso, livros infantis, CDs e DVDs de Bia Bedran e Palavra Cantada, roupas surradas, inclusive uma de palhaço arlequim, algumas garrafas de indaiá...
O sargento ainda arrisca uma ultima pergunta, antes de devolver confuso os documentos:
- Que faz aqui?
E o homem responde, juntando suas burundangas e socando-as nas malas, sem muito zelo:
- Vim contar mentiras, histórias e causos!
Dito assim, pendura seus trecos nos tantos ganchos do corpo e sai a pé, pela Rua Dom Pedro II, da Centenária Cidade de Crateús, com seu coração maior que o juízo, seguido de longe pela viatura do Ronda, passando por debaixo do arco da Santa e tocando em frente, até onde a lei da gravidade o torne queda (ou salto) outra vez.



sexta-feira, 15 de julho de 2011

Laço




Raimundo Candido disse:

Por onde te escondias, poetisa?
O tempo passava e a gente te via
por ai, toda arte e prosa, toda rosa,
mas nada do que agora mostras: poesia!!!

Adiposidade
Nem só o olho é gordo
quando as papilas sonham
(onze em cada dez!)
com docinhos e pastéis.

Nem só a adiposidade
deságua num ventral pneu
sedimentado pelo ávido
descontrole de uma gula.

Nem só um obeso sobejo
 de repulsa e decepção
arboriza-se na desfiguração
ridícula e risível do espelho.

Raimundo Candido

terça-feira, 12 de julho de 2011

Tykere, uma fábrica de sonhos, amizade e alegrias...

Maria da Conceição Rodrigues Martins (Nêga)[1]

Quem de perto conhece meus sentimentos, minhas crenças e defesas de mundo sabe que por batismo sou Maria da Conceição, uma mulher de fé, de amor, que busca alegria com o amparo da verdade, pois creio na objetividade proposta pelo materialismo histórico. Popularmente ou afetuosamente sou Nêga, assim mesmo, com acento, uma entusiasmada pela terra Crateús, apaixonada pelas letras, pela poesia, pela cultura e pelos amigos.
Assim é insistente minha busca em unir esses elementos, para mim, imprescindíveis, a outra tão presente e importante paixão que carrego: a educação ou Educere, tirar de dentro ou ainda a arte de partejar como sugere o mestre Paulo Freire[2].
Pois bem, existe um grupo em nossa cidade que propiciou-me esta alegria do partejamento, juntando em um só caldeirão: sentimentos, trabalho, conhecimento, alegria e beleza. O Bloco Tykerê é o nome dessa rica mistura. Com as pessoas que compuseram esse grupo até o ano de 2006. Estudei, dancei, aprendi, criei, inventei, chorei, briguei, comemorei... Fiz muitos amigos e alguns poucos oponentes. O fato é que o Tykerê tornou-se junto com seu principal adversário, o Bloco Mandacaru Beleza, um grande diferencial para a cultura da região, revelando talentos, profissionais competentes, sensíveis e criativos. E como nasceu tudo isso?
O ano era 1998, o sonho: montar uma fábrica de alegria; o desafio: recuperar uma das festas mais populares de nosso município, que durante algum tempo demonstrava sinais de cansaço, beirando ao descaso até surgir um gestor capaz de nos dizer em palavras e ações que “cultura faz bem”.
Nesse período propício à criação reuniram-se artistas, professores e empresários, pessoas advindas dos grupos Sepultura e Tá tudo serto. Dessa união nascia o grupo cultural Tykerê, um bloco louco por você. Juntos, trabalhamos (muito), estudamos, festejamos (muito) e criamos uma nova forma de fazer carnaval. Numa inusitada receita unia-se à proposta das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro com os moldes das grandes micaretas baianas.
Com carros alegóricos, fantasias luxuosas e coloridos abadás, cantamos em 1998 a alegria e o talento da professora de arte educação Rosa Moraes; alertamos sobre a poluição do velho Poty no ano de 1999; em 2000 fomos convidados a festejar os 500 anos de Brasil, uma festa verde amarela e todas as outras cores ; em 2001 foi a vez de destacar os 50 anos da TV brasileira. Quem não lembra da alegria de ver o Dedé Loyola e o saudoso Aldileno no Cassino do Chacrinha? Em nossos desfiles todos os sonhos eram possíveis.
Em 2002 ousamos vestir a alma de branco pra vida ter cor e de forma poética cantávamos a paz no mundo e na nossa aldeia; uma pomba gigante atravessava a avenida.  Todavia foi no ano de 2003  que emocionamos o público e um dos jurados, Gilmar de Carvalho, que vibrou lá dos camarotes, enquanto cantávamos e dançávamos na avenida: Cata rima, catavento, cata verso, canta meu Tykerê poesia e paixão (FRANÇA; MARTINS 2003)[3]. Cantamos naquele emocianante desfile a obra de Patativa do Assaré, noite em que a  poesia popular ganhou brilho e movimento.
Em 2004, aventuramo-nos no estilo boêmio das noites crateuenses, embalados pelos versos do poeta Elias de França que nos dizia: na cidade sou cigarra, sou artística, meu Crateús é meu cantar, cidade à beira do Poty onde a Boemia se banha ao luar. Assim cantamos a boemia, fazendo a cidade lembrar que o  famoso Club Beira rio já não estava mais lá.
 No ano de 2005 a maioria dos componentes do Tykerê optou por não participar da Carnafolia e somente no ano seguinte, cantamos o jeito baiano de viver, amar e escrever com Jorge Amado. Eita Jorge letrado bailado, eita jeito baiano de amar Tykerê que também é amado vem todo pra te cantar... (FRANÇA ; MARTINS 2006)[4]
Foi somente no ano de 2007 que nosso Tykerê conseguiu por meio de uma justa e questionada homenagem levar para avenida um significativo número de foliões. Com o enredo o Dom do mundo, um dom de amor, fez na avenida um verdadeiro tributo a Antonio Batista Fragoso, o nosso dom e naquela noite foi tão bonito se ouvir a canção, cantada de novo...  o próprio Zé Vicente veio para cantar e testemunhar tanta emoção.
Outros enredos foram cantados como os quatro elementos fundamentais da natureza (2008); a África mãe de todos nós (2009); o Velho rei do cangaço (2010) e a escritora Raquel de Queiroz (2011). Enfim diversos temas que motivaram não só a alegria por se tratar de uma atividade lúdica, carnavalesca, mas que conseguiu de forma didática gerar conhecimento, educere, tirar de dentro das pessoas novas sedes e aprendências, para mim algo fundamental em um feito artístico.
Muitas são as histórias e as  pessoas que merecem aqui serem citadas, mas temo ser injusta com alguém que tenha madrugado em nome da alegria, da cultura e da estética, por isso destaco dois nomes representativos durante pelo menos uma década dentro do grupo de amigos que fiz no Tykerê, notadamente, Cicy Macêdo e Osvaldo Melo.
Ela, pela sensibilidade, habilidade e competência técnica na área artística. Sem o talento da nossa Cecy não teríamos tido tão lindas baianas, pierrôs e colombinas no asfalto que virou palco lírico de seus figurinos que misturava o rústico, o lixo e o luxo. A ela devemos muito.
Ele, o Osvaldinho, por seu empreendedorismo e senso de organização que foi fundamental para que o bloco ganhasse destaque para além das terras de karatius. Muitos afirmavam que o Tykerê não era bloco, e sim uma empresa. Com todo esse grupo de gente apaixonada por festa , encontros e alegrias, podemos afirmar que o Tykerê tornou-se mesmo foi uma fábrica de sonhos e de amizade. A cada ano, um carnaval bonito, alegre, mas – sobretudo – organizado. Graças à liderança e ao carisma do Osvaldinho e a partir de seus ensinamentos não podíamos mais fazer arte distante de um  planejamento financeiro.
Por fim, asseveramos que o Tykerê foi e é; hoje com novas lideranças, novos olhares e também novos talentos, um grupo de pessoas unidas pra fazer carnaval e dizer que esta festa também pode ser permeada de educação, competência, afeto, sentimentos latentes e muita fé. Assim é o Tykerê, um bloco louco por você.



[1] Mestre em Educação (UECE). Professora substituta da Faculdade de Educação de Crateús (FAEC-UECE); ex porta bandeira do Bloco Tykerê

[2] Paulo Freire educador  nordestino reconhecido internacionalmente por ter estruturado a Pedagogia Libertadora.
[3] FRANÇA, Elias de. MARTINS, Maria da Conceição Rodrigues. Poeisa e Paixão. 2003.
[4] Elias de França e Maria da Conceição R. Martins . Jorge, letrado bailado ...amado (2006)

segunda-feira, 11 de julho de 2011


                                                                  
                                           Poço da Roça
            Tínhamos o domingo como uma hora de recreio. Um gostoso intervalo entre as fastiosas horas de uma semana sem fim.  Impacientemente aguardávamos aquele momento em que mal começava o dia, no cruzamento da Rua Frei Vidal com a Padre Juvêncio, quando íamos chegando um a um. Nunca era o primeiro a chegar, fato que me dá a impressão que aí começou o horrível hábito de descumprir as minhas futuras horas de precisão, embora morasse ali mesmo, naquele subscrito endereço. Às vezes o Bitonho, outras o Renato, já estava por lá nos aguardando. Era um grupo bem unido, muito compacto de cinco ou seis meninos. O Flávio tinha um Q de adulto, com ares de um amadurecimento antecipado, ainda que não passasse disso, mas comandava a partida marchando em frente, sem uma ordem expressa, para que o seguíssemos.
            Já sabia de memória quantos passos teríamos que dar do final da rua até chegar a nossa magnífica piscina olímpica. Um imenso poço que nunca secava. Um espelho imperecível com sua lodosa água verde e por isso mesmo eterno em nossas mentes. A longa marcha começava com uma selvagem alegria infantil que borbotava de nossas almas, num contentamento que só aparece entre as crianças que além de companheiras, se sentem iguais. Era uma longa trilha por entre marmeleiro e mufumbos, sempre margeando o leito seco do Poti que nos mostrava sua calha poeirenta e entorpecida, num estado letárgico para suportar sua longa espera até chegar uma nova quadra invernosa.
            Os raios de sol desdobravam uma paisagem minuciosa para o nosso entusiasmado olhar, que ia captando tudo como uma avidez impressionante. Um calango colorido disparava em fuga por entre os gravetos do chão, produzindo um gostoso chiado nas folhas secas. O Bem-te-vi recebia-nos com sua algazarra de boas vindas. Era uma catingueira agreste que se mostrava viva e exuberante na sua difícil maneira de subsistir. Nada passava despercebido aos nossos avivados sentidos, até um louva-a-deus em seu equilibrado voo de moderna aeronave ou enquanto pousava num galho, aparentando uma pessoa em serena oração, nos deixava em estado de alumbramento. Os pássaros cantavam, e nós tentávamos imitá-los num desarranjado assovio àquele milagroso som do bico de um golinha, de um estrelinha ou do galo campina com todo o esplendor de uma Flauta de Pan.
            De longe avistávamos o imenso poço de água doce e logo a adrenalina aumentava nosso anseio só pela sua simples presença. Ali se manifestava uma magia e um mistério que éramos incapazes de compreender. Percebíamos que a sede da terra em sorver toda água do mundo, no Poço da Roça estava saciada. Por isso, aquela imensidão ficava em paz. Nem o sequioso chão o sorvia, nem o inclemente sol o devorava, feito vapores para suas dispersas nuvens brancas.
            Os bancos de areias, ao lado das pedras baixas, se estendiam como lençóis e nos convidavam ao banho. Infinitos segredos foram desvendados sob as imensas copas das oiticicas, do imbuzeiro ou embaixo de um grande juazeiro que nos oferecia sua abrandante sombra enquanto as singelas lavadeiras nos ofertavam esplendidas visões que enrubesciam nossas faces.
            Se a mais autêntica forma de felicidade é ser feliz sem motivo, éramos genuinamente afortunados na embriaguez da existência, em comunhão com àquela hora que conservei num infinito antes de mergulhar na solidão da minha realidade futura. As árvores confabulavam com os irrequietos duendes do ar, as rãs bisbilhotavam na água enquanto um céu esplendorosamente azul aquiescia o nosso mergulhar e abrandava o medo que sentíamos de encontrar os assombrosos monstros que sempre habitam a escuridão das nossas águas turvas. Nadávamos de uma margem a outra até gastar o fôlego, com a seriedade das competições olímpicas.  Havia muitas brincadeiras, mas a de que mais apreciava, era lançar o pitel, pedrinhas de forma chata para saltar sobre as águas.
            Arremessávamos na horizontal, e ela corria vencendo a cruel gravidade até perder o fôlego e mergulhar. Discutíamos: foi cinco! Não, foi seis! Foi, foi dez... Lembro-me bem, era minha vez e lancei o pitel que se suspendeu no ar bateu resoluto na água e voltou como um pássaro para o ar, uma, duas, três... dez... vinte ... e ainda assim está, a quicar, por lá!

Raimundo Candido

sexta-feira, 8 de julho de 2011

UM OITAVADO ABRAÇO DE ANIVERSÁRIO!



Nascer no dia 8, poeta, é uma benção!

Oito é o número da luz, festa sagrada, lírio de Jesus, aliança colada!

Só que você é meio descolado, cheio daquela fé dos ateus, chegado a uma festa profana e, talvez até por isso, seja esse ser obscuro condenado à luminosidade!


(Júnior Bonfim)


Se foi no dia oito, tens um biscoito!
Mas acho que não, é muito pouco...
Elias? Nem é oito nem é oitenta,
é talento pra lá de oitenta e oito!
É como a gente ver passar o trem,
nem se imagina o impulso e o vigor
que o impele a este  dom que ele tem
buscando a perfeição com todo rigor,
em vagões e vagões de engenho e arte.
Acho que ele veio mesmo foi lá de marte!

Raimundo Candido


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Muito obrigado, poeta, pelas palavras e pela tradução desse meu humilde ser!

Viver no meio de uma geração tão iluminada, ainda que quase toda (todos) com alguns trejeitos de obscuridade, profanismo e rebeldia, é para mim um grande privilégio, alem da benção.

Grande Abraço!

Elias de França

.................................................................................
Raimundo, nós que já estamos pra lá dos oito,
querendo conquistar os oitenta
com saúde, paz e poesia,
e, quem sabe, os 88,
ou, quem sabe ainda, os 88 mais 8 e mais 8,
agora, com os seus versos,
vamos todos fazendo vida longa,
ao sabor deliciosos dos biscoitos caratis,
de Crateús até Marte!
Muito obrigado pelos trocadilhos com sabor de biscoitos, que, vindos assim da alma, valem mais do que qualquer outro tesouro!
Grande abraço!
Elias de França
+++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++
Isis Celiane disse...




Parabéns ao Elias: amigo, poeta, compositor, dramaturgo, artista plástico, pedagogo e fiscal da SEFAZ... rsrsrs. Você cumpre bem todos estes papéis, o de amigo especialmente.
Celi.
Sexta-feira, 08 Julho, 2011

Muito obrigado, Querida! Constar da sua lista de amigos é para mim um grande privilegio!
Grande beijo!
Elias

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Cantilena à Princesa

Cantilena à Princesa

Foste em teu calor escaldante e sol brilhante, uma quimera...
agora, alvorecendo, empunhar raios do teu brilho eu quisera,
como os brutos diamantes te lapidam e burilam...
uns instigam a tua vinda, outros duvidam que tu hás de nascer,
limitados em mente não percebem ainda que tu já veio;
desce sobre o Alto as inspirações das Musas enquanto...
a flauta ou os pífanos soam ao teu anúncio que é constante como a luz estrelar;
de imediato, o vento vindo do Oeste sopra um ralho arrebatador
e, os ouvidos se aguçam para compreenderem a melodia da natureza!

Porém, os ventos nos trazem nuvens de todas as partes,
regozijam-se os pássaros; os colibris da Caatinga agora têm néctares a sugar;
identifica-se a exuberância de tuas matas no inverno duradouro ou passageiro
no momento em que se recolhe e se exibe como seca ou como esverdejante;
com isso deduzem que tu renova-se a cada tempo;
e as gotas do céu formam notas que se entremalham nas vozes das aves,
se pudéssemos então perceber, neste momento a água transpassando a terra...
aí, veríamos a beleza da Criação, gerando vida, luz e saber!

diante de tanta majestade, no decorrer de tantas lutas, de sonhos...
o orgulho vitorioso não o desdenhoso, brota em nosso seio!

Os campos não somente iluminados pelo Sol e sim pela Tocha do saber,
entram com as mais belas variações de cactos que compõem nossa paisagem;
se os poetas antigos aqui vivessem, (e vivem), também sentiriam todo este clímax...
também enxergariam o veludo verde que tu, como concreta e majestosa se veste
e é por isso que as línguas dos poetas e dos músicos te chamam Princesa do Oeste!

Éricson Fabrício
(Educador e Poeta)

terça-feira, 5 de julho de 2011

Canivete

Um afiado canivete talhou em duas
a vida que era una, trina, múltipla.
Uma foto decepada na parede ficou,
num sinal difuso, afeito vil afronta.

O canivete apagou como borracha
o que antes eram os passos a indicar
meu território e meu exato domínio que
se desfez, qual aquáticas  bolhas de ar.

Degolou-me no instante que irrompia.
Dilacerou-me quando uma luz inexistia,
logo quando os revoltos olhos almejavam
o que sempre apetece ser neste subsistir.

Resvalo desfalecendo tal pesado fardo,
desde que a fina lâmina degringolou-me,
e na meia fotografia uma nodosa gravura
sangra e chora, feito meu inexistente ser.

Raimundo Candido

segunda-feira, 4 de julho de 2011

                                          
                                           “Ô de casa”
                                           “Ô de fora” 

As residências estão habitadas de medos.
As câmeras de segurança desconfiam de qualquer pessoa. Alarmes estão prontos para delatarem assaltos. As guaritas blindadas procuram suspeitos. Cingindo a residência, cercas elétricas armazenam o choque fatal. O interfone não permite olharmos a cor dos olhos da irritada voz feminina perguntando: o que é? Cães pit bull latem apetitosos por ataques mutiladores.
Os extensos muros de pedra dos luxuosos condomínios residênciais difundem a rusticidade dos castelos medievais, que protegiam seus moradores dos povos invasores. Nesses condomínios – será que eles já possuem passagens subterrâneas? – cada inquilino soma às suas necessidades de defesa, outros equipamentos de segurança: portas e janelas gradeadas, assemelhando-se a celas prisionais.
Vizinhos não conversam mais. As cadeiras, que pertenciam às calçadas embalando as conversas de boca de noite, hoje são imoladas pela TV.
As ruas estão habitadas de ausência de crianças. Tanta coisa a fazer. Tanta conversa. Tanta novidade. Elas não brincam mais de bila, de triângulo, de peteca. Não existem mais as rodas de meninos trocando figurinhas de álbuns. Todos estão nos majestosos condomínios, algemando-se ao computador.       
As residências de hoje são solitárias, lado a lado.
Sempre inventamos novas maneiras de errar.
Lastimável o ontem não ser para sempre. Casas de portas abertas aos ventos. Janelas escancaradas acolhendo a luz da alvorada. Muretas permitindo olhares para as azaléias, buganvílias e violetas nos jardins. Liberdade! Assim eram as casas da minha infância. Quando alguém chegava, batia palmas, se anunciando: “Ô de casa”. Da cozinha cheirosa de temperos, vinha a resposta: “Ô de fora”.
 Mesmo não sabendo quem era. 

Silas Falcão, autor do livro de crônicas Por quem Somos?

Isis Celiane disse...


O nome de tudo isso é solidão. Triste constatar que essa necessidade de proteção isolou, com grades e cercas elétricas, não apenas as casas, mas sobretudo o homem.
Parabéns ao colega por verdades ditas de forma tão bonita e poética.
Segunda-feira, 04 Julho, 2011

domingo, 3 de julho de 2011

Um offício da Villa              

Desde lá, que se perdem as esporas,                        
o incitamento, a marcha, o júbilo.
Aqui, subtrai-se o bridão, o estribo.
E nunca mais se reverenciou Oeiras.         

Nem o calor do sopro monárquico            
reina mais na remota Príncipe imperial,
a poeirenta Villa, que nunca se dobrou,
nem ao ferro nem ao fogo da lei.

Como aquelas lendárias Sabinas,               
as desejadas mulheres  romanas,
as  filhas alheias daqui, também
se raptam, armados de clarinetes.

A despeito das ordens terminantes,
facínoras  completamente soltos
cavalgam. Ainda agora passeiam,
a olhos vistos das autoridades.

Raimundo Candido

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Tempos modernos


Para o aquecimento
ventilador

Para o desmatamento
jardim

Para a desnutrição
jejum

Para a poluição
rio

Para a criminalidade
revólver

Para a felicidade
alienação

Para crer no homem
deus?

Lourival Veras

A mulher de todos nós


É uma dessas mulheres cujo pai era fiscal do Estado.Vivia ele de ribeira em ribeira, a mandado do ofício, arrastando na bagagem a família, dando a cada um dos filhos uma cidade diferente como lugar de nascença.
Uma dessas vilas pariu a Socorrinha, que, por segredos que o destino esconde, acabou ficando e adotando como pátria a cidade dos vales potis. Crateús, logo esta emblemática terra do sertão oeste do Ceará. E logo num tempo em que corriam histórias de horrores e de resistências de um povo, liderado por um Bispo Vermelho, que não se curvava às injustiças.
A menina aprendeu cedo os trejeitos da terra-mãe. Revelou-se rebelde, teimosa e bravia e enfileirou-se pelas ruas nos decididos cordões juvenis, a clamar por liberdade. Mas do outro lado havia os “indecisos cordões”, mandados para tornar as vidas sem razão. Assim, já aos 14 anos, a ainda tão menina experimentou a contragosto a escuridão dos porões da ditadura.
Era 1981, quando o país pensava que respirava o alívio trazido pela lei da anistia. Os cavaleiros dos horrores pintaram de verde a cidade para receber o presidente em exercício, Aureliano Chaves. Em farsa bem encenada, o mandatário discursaria nos bolsões da seca, que há muito trucidavam de tiranias os flagelados camponeses.
Aqueles pobres sertanejos, apesar da miséria, haveriam de acolher a autoridade com seus olhos de esperança. Porque assim a força lhes fazia agir, e a fome não lhes matara o seu gênio pacífico.
Mas os olhos da menina sabiam que o amanhã há que ser feito. Sabia que deixando como estava, tudo ficaria ontem para sempre. Então foi às ruas, donde foi arrastada para o submundo do horror. As tesouras da força podaram seus cabelos loiros, como à Geni, a quem atiraram as pedras das honras...
No mais, restou viver o que possível fosse. O pai não mais arrasta a família, de vila em vila. Arrasta-se, agora, ela própria, seus traumas sem fim, que vai transformando em arte. Quando a mente não suporta, dá um jeito: apaga. Uma amnésia, uma cegueira, uma perna manca vão resolvendo as coisas. Seu cérebro é meio que como o calcanhar de Aquiles ou os cabelos de Sanção: falha na hora incerta.
Quando acerta, ela enche os ouvidos com seu soprano suave. Canto de Iara. As canções que encena chegam às estrelas. Outras vezes banca a Maria Amélia, essa matuta fofoqueira, que toma conta dos palcos e ribaltas coçando seus piolhos. Na paixão, não passa de uma adúltera, apedrejada nas calçadas do mundo. E no presente da vida real, é mulher que ama demais, mesmo quando o mundo não lhe transparece afeto.
Que Socorrinha, socorrida por seu cérebro fajuto, nos tormentos das memórias vis, e genial, no milagre da arte, continue sendo um(a) socorro da cultura de nossa terra, vanguarda do nosso teatro e nossa música, tocha acesa no facho da luta a se tornar estrela nas praças e palcos de Crateús.
Elias de França

Convite aos acadêmicos

quinta-feira, 30 de junho de 2011

O NOSSO NUMERO 1

No tempo em que eu era menino, o mundo inteiro era as ruas de minha cidade, que eu corria num segundo, montado em bicicletas alugadas à hora no Beco da Galinha Morta. Ainda assim, por mais que eu me esforçasse, não havia jeito do meu dia caber nas horas adultas: ia pra rede à força, obrigado, zangado, mesmo então achava um desperdício dormir. Afinal, era tanta coisa a fazer, tanta brincadeira, tanta conversa, tanta novidade, e o tempo de estar acordado de jeito nenhum abarcava tudo. E pra piorar a situação, acharam de inventar os álbuns de figurinhas: para cada página completada, um prêmio – liquidificador, televisão, bicicleta... Minha vida virou um inferno!
Foi nessa época que eu conheci o Ferreirinha. Também, vivia na Casa Norberto Ferreira! Cada centavo que eu conseguia, era lá que eu ia deixar, trocado por envelopes de três figurinhas, torcendo pela premiada, pela “difícil”. Éramos um magote de meninos, todos ávidos, zuadentos e urgentes, e Ferreirinha atendia a todos, dividindo o tempo entre os fregueses que para ali acorriam na certeza de que tudo tinha, a mesma paciência que ainda hoje carrega em seu semblante de nonagenário. Comunista de carteirinha, nada nele denunciava aquela figura perigosa com a qual os adultos nos amedrontavam em noites de lua cheia, em conversas pelas calçadas: “Comunista é matador de padre, comedor de criancinhas...”. Eu, pra falar a verdade, achava o Ferreirinha um sujeito muito do inofensivo.
Mas foi somente depois de adulto, tendo já andado meio mundo, que eu vim a saber de fato quem é Ferreirinha e o porquê dele às vezes incutir tanto medo em algumas pessoas. Ferreirinha é autêntico, é coerente, é humano, interessa-se e luta pela condição dos mais carentes. Independente de questões partidárias – pelas quais “puxou” cadeia diversas vezes –, nunca abdicou de falar contra os desmandos dos poderosos, contra o malfeito dos insensíveis. A ambição e a riqueza fácil nunca o atraíram. Jamais percorreu o cômodo caminho da bajulação, nem contentou-se com a felicidade que só alcança aos amigos do rei.
Mesmo tendo frequentado o estudo regular por apenas seis meses, Ferreirinha tornou-se o maior memorialista de nossa história, contando-a em livros que são reverência a um tempo que não pode e nem deve ser preterido. Jornalista, radialista, cronista popular, folclorista, pesquisador, escritor e historiador, hoje com 93 anos, Norberto Ferreira Filho, o Ferreinha, é o símbolo vivo do homem que constrói o seu lugar como uma casa onde todos caibam, igualmente, irmãos em fartura e alegria.
Eu sinto saudades dos meus tempos de menino, é claro. Do Ferreirinha, não. A este eu tenho agora muito mais presente na minha compreensão de homem. E mesmo a sua vista cansada, sua memória falha, seu andar trôpego, de bengala à mão, me são imensuravelmente caros.

Lourival Mourão Veras

Raimundo Candido disse:

Todo poeta-menino que bebeu o frêmito do mundo pelo olhar, quando chega a mago-poeta nos devolve-o, feito um tesouro, riquíssimo, sublime, como se o resgatasse do fundo do mar! Notável Lourival, delirante poeta, profeta profícuo, esdrúxulo xamã!

terça-feira, 28 de junho de 2011

ALC EM OEIRAS - PIAUÍ






Lourival disse...


Parabéns aos nossos pesquisadores viajantes! Com certeza, o livro em processo sobre a história dos 100 anos de Crateús ficará bem mais completo com as informações que vocês trarão dessa viagem às nossas origens. Boa sorte.

Quarta-feira, 29 Junho, 2011

segunda-feira, 27 de junho de 2011

                                               Malvada Cachaça

                A cidade tem um aspecto antigo, numa aparência rústica e secular, com suas casinhas singelas de um verniz desbotado neste tempo cru, desde o alvorecer até o sossegado entardecer. Um acontecimento incomum é uma raridade neste ermo lugar. Nada perturba a tranquilidade desta existência estática a beira de um nada.
                Mas um sino dobra insistentemente no fim de tarde, com aquela monótona badalada que se repete aos meus ouvidos, anunciando que alguém vai desta para melhor ou para pior, coisa que ninguém pode ainda afirmar com certeza. Um calor abafado causa um enorme embaraço na serenidade do espírito, com aquela aragem que nem se move, só sufoca.
                O único movimento é de um funeral que se desloca no ritmo dos dobres de um rouco sino, como se o tangesse, passo a passo, pela estreita rua que nasce na praça da matriz e termina num quadrilátero cercado por altos murros que guarnecem os caiados túmulos do cemitério.
                A passeata fúnebre é acompanhada de cinco ou seis figuras quase que dispersas, que se mostram com um ar familiar ou de amigos, numa última despedida.
                Aproximo-me, meio encabulado do esparso cortejo e indago a um dos acompanhantes:
                - Quem foi este que faleceu e vai assim nesta triste marcha derradeira, de modo tão lânguido e só? E respondem-me indiferente:
                - Este que vai pálido e encerrado assim, como a noite fria, incontrolavelmente bebeu. Bebeu seu nome, bebeu seu emprego, sua morada e a sua família. Como uma esponja, ingeriu toda cachaça do mundo até que a morte o sorveu.
                Sem muita surpresa, aceito essa explicação. É-me comum essa situação. E sigo meu rumo em sentido oposto ao deste cortejo fúnebre fazendo a mesma pergunta a muitas outras marchas que brotam de minha irrequieta memória, outros funerais que desceram àquele beco, muito bem conhecido de todos nós. Silenciosamente ainda indago-me:
                - Quem foi este que faleceu e vai assim nesta triste marcha derradeira, de modo tão lânguido e só?
                Uma única resposta me é dada por meu senso atordoado ao perceber as desgraças, ao contemplar as ruínas que se instalam lentamente como teias de aranhas em nossas vidas e que nem percebemos, levando-nos para um abismo final.
                E solenemente, digo-me:
                - Bebem a vida porque não mais resistem à aguda e insuportável sobriedade. Preferem viver sob a simulação ilusória da asa do álcool. Matam-se hoje para renascer no dia seguinte, antecipando um término, num lento suicídio feito em mil partes, até que um dia, com razão ou sem razão, quando todos os prazeres não mais existirem e só os lastimosos tormentos restarem, notam que a festa acabou. Neste momento vestem um novo paletó feito do cerne das árvores e se despedem, saudosamente, da malvada cachaça. 

Raimundo Candido